A relativização da impenhorabilidade do bem de família de vultoso valor na execução civil

Autor: Guilherme Silva Araujo

Publicado na Mostra de Pesquisas do Congresso de Direito da UFSC 2015.


Palavras-chave: Execução; Penhora; Impenhorabilidade; Bem de família

 

Ao analisarmos a redação dos artigos 1º e 5º da lei nº 8009 de 1990 chegamos à conclusão de que se demonstra como absolutamente impenhorável o imóvel utilizado para a residência da família, quando da inexistência de outros que satisfaçam a execução.

Neste passo, percebe-se que o legislador não positivou qualquer espécie de ressalva para a mencionada impenhorabilidade, colocando assim na vala comum imóveis de padrão luxuoso e pequenos casebres, deixando desta forma de atender apenas ao fim que se propôs a lei, mas também, servindo de proteção aos executados afortunados, que se valendo da letra da lei locupletam-se à custa de outrem e se mantém residindo em moradas de alto padrão enquanto os credores peregrinam em busca da satisfação de seus créditos.

Pretende-se neste estudo, na esteira do pensamento de Cândido Rangel Dinamarco, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Márcio Manoel Maidame, dentre outros autores apresentar argumentos que demonstrem a necessidade de haver um controle de constitucionalidade por parte do judiciário no sentido de permitir, em casos excepcionais que se penhore bem de família quando de valor vultoso, desde que remanesça valor suficiente para possibilitar a aquisição de nova residência digna por parte do Executado assim como pretendia a redação original da lei 11.382 de 6 de dezembro de 2006 ao propor o parágrafo único do artigo 650 do Código de Processo Civil vigente, que após aprovado pelo Congresso Nacional acabou vetado pelo presidente da República à época Luiz Inácio Lula da Silva.

Assim, além de analisar os aspectos gerais acerca do tema, bem como a legislação em vigor e os posicionamentos jurisprudenciais que defendem a relativização da impenhorabilidade do bem de alto valor, faz-se uma reflexão ainda acerca da inconstitucionalidade do veto presidencial, que impediu a vigência do Projeto de Lei nº 4.497/04 proposto pelo Ministério da Justiça, que tinha como objetivo desfazer a incoerência mencionada e tentar dar maior efetividade ao processo de execução civil.

Para a elaboração deste artigo foi utilizado o modo de pesquisa bibliográfico, que se consistiu no exame de obras de vários autores das áreas do Direito Civil e Processual Civil e o método utilizado foi o dedutivo de abordagem, por meio do qual se partiu de conceitos gerais sobre processo de execução, penhora e impenhorabilidade do bem de família.

 

Keywords: Implementation; Attachment; Unseizability; Family well.

 

In reviewing the wording of Articles 1 and 5 of the 1990 Law No. 8009 we came to the conclusion that demonstrates how absolutely impenhorável the property used for the residence of the family, when there are no other satisfying execution.

In this step, we can see that the legislature did not positivou any sort of caveat to the above-mentioned unseizability, making the mass grave luxurious standard of real estate and small shacks, leaving this way to meet only after it proposed the law, but also, serving protection fortunate to run, that drawing upon the letter of the law locupletam to the expense of others and remains living in high-end mansions while lenders pilgrims in search of satisfaction of their credits.

It is intended in this study, following the thought of Cândido Rangel Dinamarco, Luiz Guilherme Marinoni Sergio Cruz Arenhart and Márcio Manoel Maidame, present arguments that demonstrate the need for a judicial review by the judiciary in order to allow, in cases exceptional that pawn and family when bulky value, since it remains an amount sufficient to enable the acquisition of new dignified residence by the Run, as well as intended to the original wording of the law 11,382 of 6 December 2006 to propose the § Article 650 of the Civil Procedure Code, which after approved by Congress just vetoed by the President of the Republic Luiz Inacio Lula da Silva.

Thus, in addition to analyzing the general aspects of the topic as well as the legislation and jurisprudential positions that defend the relativity of high value and the unseizability, it is still reflecting on the unconstitutionality of the presidential veto, which prevented the validity of Bill No. 4497/04 proposed by the Ministry of Justice, which aimed to undo the mentioned inconsistency and try to give greater effectiveness to the civil enforcement proceedings.

For the preparation of this article was used bibliographic search mode, which consisted of the examination of works by various authors in the areas of civil law and civil procedure and the method used was deductive approach, through which broke general concepts about process execution, attachment and family and the unseizability.

 

1 INTRODUÇÃO

 

O objetivo perseguido no presente escrito nem de longe é sepultar a discussão acerca da plausibilidade ou não acerca da penhora do bem de família, mas tão somente demonstrar, aos acadêmicos e operadores do direito, que em um prisma constitucional não se faz razoável considerar absolutamente impenhoráveis os bens de família de valor luxuoso nos processos de execução civil.

Antes de realizar uma análise crítica ao instituto da impenhorabilidade do bem de família se torna necessária uma curta abordagem acerca da positivação de tal vedação, bem como analisar brevemente o processo legislativo que fez constar em nosso ordenamento a impossibilidade de penhora do bem utilizado para moradia da família que não possua mais patrimônio.

Neste passo, Código de Processo Civil brasileiro de 1973, em seu artigo 649, que teve a redação mantida no Artigo 833 do Novo Código de Processo Civil estabeleceu quais seriam os bens absolutamente impenhoráveis.

Tal dispositivo demonstra-se como uma iniciativa do legislador em proteger alguns direitos básicos à subsistência do devedor, impondo limites assim para os atos expropriatórios no processo de execução civil, no sentido de vedar a penhora de bens de utilidade substancial.

A fim de regulamentar especificamente a proteção à moradia, que não se encontrava positivada de maneira cristalina no diploma legal citado acima, a Medida Provisória nº 143/90 foi convertida em lei em 29 de março de 1990 na lei nº 8009, passando a dispor sobre a impenhorabilidade do bem de família, estabelecendo em seu artigo 1º que:

O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei (BRASIL, 1990).

A inclusão legislativa supramencionada foi uma maneira de conceder densidade normativa ao texto constitucional no que diz respeito ao direito a moradia, que se encontrava abstratamente resguardado no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, estabelecendo que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).

Segundo Azevedo (2002, p. 93), tal proteção denominada de impenhorabilidade do bem de família é “Um meio de garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde a mesma se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade”.

A impenhorabilidade absoluta do bem de família se manteve inflexível durante anos, sendo reconhecida de maneira unânime pelos tribunais quando se buscava a satisfação de um crédito mediante a penhora de um bem que atendia os requisitos dos parágrafos 1º e 5º da lei 8009/90.

Neste diapasão, surgiu como recorrente argumento contrário à impenhorabilidade absoluta do bem de família a falta de critério para tratar de maneira diversa imóveis de valores diferentes. Ou seja, considerava-se impenhorável tanto um singelo casebre, quanto uma vultosa fazenda, deixando muitas vezes de efetivar-se a execução em prol de proteger um devedor que residia em propriedade luxuosa.

Neste sentido, surgiram correntes defendendo a ideia que, em certas ocasiões, tal impenhorabilidade deveria ser relativizada, tendo em vista que se chocava com alguns princípios constitucionais, tais como da Proporcionalidade e Dignidade da Pessoa Humana, considerando que não se faz razoável o exequente ser privado de receber seu crédito em detrimento de um devedor gozando de imóvel luxuoso protegido pelo absolutismo da lei.

Tais correntes resultaram em decisões isoladas pelos tribunais brasileiros, afastando a impenhorabilidade de residências que se sobrepunham a um padrão de vida normal, apesar de ser o único bem do devedor, tais como a Apelação Cível nº 7.018.819-1. oriunda do Tribunal de Justiça de São Paulo, relatada pelo Desembargadoror: Fernando Bueno Maia Giorgi em 27 de outubro de 2006, que restou assim ementada :

PENHORA. Incidência sobre parte ideal de coisa indivisível. Admissibilidade. Recurso desprovido.

PENHORA. Incidência sobre bens de família. Coisas suntuosas e de grandes dimensões, porém. Proteção legal que não pode favorecer o devedor que, mantendo residência suntuosa, causa prejuízo aos credores. Suficiência da redução das penhoras a partes ideais para que, após a conversão em dinheiro, os devedores possam adquirir moradias dignas. Recurso desprovido.

EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. Contraio de arrendamento com opção de compra. Cerceamento de defesa inexistente. Pretensões à obtenção de abatimento e à rejeição da coisa já acobertadas pela decadência. índice de correção monetária que foi pactuado e deve prevalecer. Multa moratória com incidência cumulativa e sucessiva, o que afronta a natureza de tal encargo. Incidência única corretamente determinada. Embargos procedentes sem parte Recursos desprovidos.

Alguns magistrados, tais como o que exarou a decisão acima, passaram a julgar realizando uma interpretação extensiva da norma com base em princípios constitucionais, relativizando, assim, uma vedação legal que no olhar de festejados doutrinadores não foi recepcionada pela Constituição Federal, em especial pelo fato de se manter apenas ainda em vigor face ao posicionamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que vetou o parágrafo único do artigo 650 do Código de Processo Civil, que havia sido aprovado pelo Congresso Nacional.

Deste modo, após estabelecido o conflito entre a letra da lei e a interpretação crítica de magistrados e doutrinadores à luz do neoconstitucionalismo, tal controvérsia alcançou o Superior Tribunal de Justiça, que tem se demonstrado conservador em suas decisões, conforme se perceberá na sequência deste artigo.

 

2 RELATIVIZAR A IMPENHORABILIDADE OU NÃO? EIS A QUESTÃO!

 

Ao iniciarmos a abordagem da possibilidade ou não de se relativizar a impenhorabilidade do bem de família de vultoso valor, devemos partir da premissa constante na Lei 8.009/90 que veda absolutamente a possibilidade de expropriação do bem utilizado pela família como residência quando inexistirem outros bens, independente de seu valor.

Tal absolutismo, em nossa ótica se dá frente a omissão de um dispositivo legal que eleja um limite valorativo para que um imóvel seja considerado um bem de família, possibilitando assim que se proteja realmente o imóvel que merece ser protegido.

Nesta esteira, merece atenção a lição de Dinamarco (2001, p. 98), que critica veementemente a possibilidade de uma mansão, mesmo sendo o único imóvel do executado ser taxada de bem de família, nos seguintes termos:

Não se legitima, por exemplo, livrar da execução um bem qualificado como impenhorável, mas economicamente tão valioso que deixar de utilizá-lo in executivis seria um inconstitucional privilégio concedido ao devedor. Pense-se na hipótese de um devedor arquimilionário mas sem dinheiro visível ou qualquer outro bem declarado, e que viva em luxuosa mansão; esse é o seu bem de família, em tese impenhorável por força da lei, (lei n. 8.009, de 29.3.90) mas que, em casos como esse, não se justificaria ficar preservado por inteiro.

Tal relativização seria, então, o ato do juiz mesmo que, inexistindo previsão legal, permitindo a expropriação do bem pertencente ao executado que possua valor acima de um padrão de vida razoável e ostente vultosidade.

Tal decisão do juiz deveria é claro, respeitar um limite de valor, no sentido de permitir que o devedor que teve seu imóvel luxuoso penhorado adquirisse outra residência digna, não desrespeitando assim o direito constitucional à moradia.

A relativização cá proposta tem apenas o escopo de aumentar a efetivação da tutela executiva, possibilitando que o julgador busque o real exercício do direito material constante no título descumprido, virando as costas, assim, para a proteção exagerada de quem caçoa da justiça e de sua ineficiência.

Este é o pensamento de Maidame (2007, p. 93), que ensina “Por isso, propõe-se que o juiz possa, em certos casos, ultrapassar as barreiras rígidas da impenhorabilidade, desde que respeite o núcleo essencial os direitos do devedor”. Núcleo essencial este, que consiste em seus direitos básicos, como a moradia.

Este, inclusive, era o conteúdo do Parágrafo único do Artigo 650 do Código de Processo Civil, instituído pela Lei nº 11.382/2006, aprovado pelo Congresso Nacional, porém, vetado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Com o intuito de analisarmos mais a fundo o conceito desta relativização proposta, analisemos o que previa o acima mencionado projeto de lei.

 

1 3 PORQUE NÃO SE POSITIVOU A POSSIBILIDADE ACERCA DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DE VULTOSO VALOR?

 

Após o advento da Lei nº 8.009/90, que positivou definitivamente a impenhorabilidade do bem de família como absoluta boa parte da doutrina passou a criticar a omissão da lei, no sentido de tratar como bem de família tanto um simples imóvel, quanto uma luxuosa propriedade, não estabelecendo parâmetros objetivos.

Deste modo, conforme analisamos no tópico anterior, passou a ser defendida por uma corrente de processualistas a possibilidade de se autorizar a penhora de bens exageradamente luxuosos, fazendo com que o processo executório se efetivasse.

Influenciada por tal posicionamento e por outras necessidades de atualização legislativa, a Câmara dos Deputados criou, em 2004, o projeto de lei n o 4.497/04, que restou aprovado na casa de origem, bem como no Senado Federal, vindo a transformar-se na lei nº 11.382 de 6 de dezembro de 2006, que alterou o Código de Processo Civil.

Ocorre que em meio a tal aprovação dois dispositivos propostos foram vetados pelo Presidente da República em exercício na época. O primeiro deles foi o § 3o do artigo 649, que propunha a seguinte redação:

§ 3o Na hipótese do inciso IV do caput deste artigo, será considerado penhorável até 40% (quarenta por cento) do total recebido mensalmente acima de 20 (vinte) salários mínimos, calculados após efetuados os descontos de imposto de renda retido na fonte, contribuição previdenciária oficial e outros descontos compulsórios (BRASIL, 2006).

E, da mesma maneira, restou vetado o parágrafo único do artigo 650, ambos do Código de Processo Civil, que possuía a seguinte redação:

Parágrafo único. Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a 1000 (mil) salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade (BRASIL, 2006).

Tais dispositivos visavam, de certa maneira, colaborar para dar maior efetividade ao Processo Civil Brasileiro no sentido de equilibrar os direitos do executado e exequente, diminuindo a proteção exacerbada aos bens do devedor, proteção esta que, que indubitavelmente, incentiva o calote.

O disposto no parágrafo único do artigo 650 se demonstraria como a positivação da relativização da impenhorabilidade do bem de família que aqui se propõe e quebraria o dogma da impenhorabilidade absoluta do bem de família possibilitando que incontáveis credores enxergassem uma luz no fim do túnel do imbróglio sem fim que é o processo de execução.

Neste trilho é pertinente a crítica de Dinamarco (2009, p. 390, grifos do autor) acerca do veto realizado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva:

Pressionado por um conhecidíssimo político que notoriamente não é flor de lisura, sendo seu parceiro em manobras de bastidores e também comparsa de conhecido estelionatário causador de danos a um grande universo de depositantes e aplicadores, o Presidente da República vetou tal disposição, com a hipócrita alegação de que “apesar de razoável, a proposta quebra a tradição surgida com a lei n. 8.009, de 1990, que ‘dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, no sentido da impenhorabilidade do bem de família independente do valor”. Disse ainda: “avaliou-se que o vulto da controvérsia em torno da matéria torna conveniente a reabertura do debate a respeito mediante o veto ao dispositivo”.

Segue a mesma linha a lição de Marinoni e Arenhart (2012, p. 261), no seguinte sentido:

O motivo apontado para o veto é apenas a necessidade de maior amadurecimento das propostas contidas nas regras, o que, evidentemente, não constitui razão suficiente para autoriza-lo. O espaço para a discussão da viabilidade de nova disciplina jurídica é exatamente o Legislativo, não se admitindo que o Executivo possa alegar, não obstante a decisão legislativa pela instituição da regra, que o seu conteúdo deve ser melhor discutido.

Acontece que a mencionada necessidade acerca de um debate mais aprofundado sobre a questão jamais ocorreu, e o assunto caiu no esquecimento do legislativo, valendo até os dias de hoje a arcaica e omissa redação da lei 8.009/90 no sentido de não se admitir a penhora do bem de família, independente de seu valor.

Ainda sobre o equívoco do Presidente da República em vetar o dispositivo que autorizava a penhora de imóveis luxuosos, Marinoni e Arenhart (2012) entendem que o erro não foi apenas político e técnico, mas também eivado de inconstitucionalidade; isto levando em conta que o controle de constitucionalidade, neste momento do processo de formação das leis, cabe ao próprio legislativo, e não ao executivo, salvo se o veto for fundamentado na afronta do projeto de lei à Constituição Federal, ou quando contrarie o interesse popular.

Neste sentido, é defendida ainda pelos autores acima citados a possibilidade de o judiciário exercer tal controle de constitucionalidade de duas maneiras: por via direta, que deveria ter ocorrido em tempo do veto, por meio da Suprema Corte, ou por via incidental, de modo que qualquer juiz poderá relativizar a impenhorabilidade do bem de família de vultoso valor levando em conta a inconstitucionalidade do veto que lhe impediu de figurar no ordenamento vigente.

Neste passo, em que pese tal possibilidade defendida pela doutrina é esmagadoramente minoritária a corrente nos tribunais estaduais que aplica em casos concretos a relativização da impenhorabilidade do bem de família de vultoso valor, inclusive se demonstrando como missão espinhosa encontrar julgados neste sentido.

Cabe salientar inclusive que a ausência de julgados acerca do tema se dá em primeiro plano em face ao desestímulo dos advogados em combater o que se encontra positivado na norma, deste modo, são raros os procuradores que por meio de recursos ascendem às instâncias superiores a fim de penhorar um bem de família valioso, haja vista que se faz cediço que é altíssimo o risco de improcedência do pedido.

 

4 A APLICAÇÃO DA RELATIVIZAÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA PELOS TRIBUNAIS

 

Mesmo frente a pouca demanda neste sentido, alguns casos já foram decididos pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que contrário à linha defendida por este artigo vem ao longo dos anos decidindo por interpretar a lei de maneira literal, abstendo-se de fazer valer a razoabilidade. Neste passo serão analisados julgados de épocas distintas, demonstrando também se houve ou não modificação dos tribunais acerca da matéria.

Neste sentido, colhe-se o seguinte deste julgado de 1992:

BEM DE FAMÍLIA – LEI N. 8.009/90 – COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – AUSÊNCIA DE QUITAÇÃO – IMÓVEL HIPOTECADO – IMPENHORABILIDADE AINDA ASSIM OPONÍVEL – AQUISIÇÃO DE MANSÃO – IRRELEVÂNCIA FRENTE AOS TERMOS DA LEI – AQUISIÇÃO DE MÁ FÉ DE IMÓVEL MAIS VALIOSO PARA TRANSFERIR A RESIDÊNCIA FAMILIAR (ART. 4o., DA LEI 8.009/90) – NECESSIDADE DE AÇÃO ADEQUADA PARA O FIM DE TRANSFERIR A IMPENHORABILIDADE PARA A MORADIA FAMILIAR ANTERIOR, OU ANULAR-LHE A VENDA, LIBERANDO A MAIS VALIOSA PARA A EXECUÇÃO, POR NÃO PERMITIR O TRASLADO ESSA SOLUÇÃO NO ÂMBITO DA PREDITA AÇÃO, UMA VEZ QUE EMERGE O DEVEDOR APENAS COMO PROMITENTE ADQUIRENTE, VIA PERMUTA, DE APARTAMENTO AINDA EM CONSTRUÇÃO, ENQUANTO O IMÓVEL PENHORADO É O ÚNICO COMPROVADAMENTE DE QUE DISPÕE PARA RESIDÊNCIA PRÓPRIA E DA FAMÍLIA – DESPACHO, QUE DECLARA INEFICAZ A PENHORA, SUBSISTENTE – AGRAVO DESPROVIDO – ARTIGOS 3o., II, 4o. e 5o., DA LEI 8.009/90>

Deste mesmo julgado, colhe-se o seguinte trecho:

Tampouco prevalece o argumento de que a proteção legal não incide sobre uma mansão. A lei, em se tratando de imóvel urbano, não faz nenhuma restrição acerca das dimensões ou do valor da moradia familiar, estabelecendo apenas que “para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência – único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente” (art. 5o.), prescrevendo o seu parágrafo único que a impenhorabilidade recairá, no caso de se tratar de vários imóveis residenciais, sobre o de menor valor.

Importante nos atentarmos para a data da decisão, que foi proferida logo após o início da vigência da lei nº 8.009/90, e muito anterior à Lei nº 11.382/2006, porém, demonstra de maneira cristalina o engessamento do pensamento sobre o tema tendo em vista que as decisões mantém hodiernamente o mesmo pensamento conservador.

Neste mesmo sentido, este julgado do ano de 2002 também do Tribunal de Justiça de Santa Catarina não autoriza a penhora de imóvel constituído por vários lotes:

Embargos de terceiro. Execução. Bem de família. Imóvel composto por vários lotes. Matrículas unificadas. Impenhorabilidade do todo. Lei nº 8.009/90. Honorários advocatícios. Redução.

Com a edição da Lei n. 8.009/90, a par do bem de família convencional, estabeleceu-se outro, independente de instituição voluntária, pondo a salvo de penhora o imóvel residencial, próprio do casal ou da entidade familiar, que não responde pelas dívidas contraídas pelos cônjuges, pais ou filhos que sejam seus titulares e nele residam.

O texto legal excetua, em rol taxativo, os casos que escapam a sua proteção (arts. 2°, 3° e 4°) e dele nada consta a respeito da dimensão ou do valor do imóvel. Portanto, em princípio, mesmo a área de grande extensão – composta por vários lotes, mas com matrículas unificadas.

O fundamento para tal negativa se dá apenas pelo fato de haver uma única matrícula, todavia, poderia facilmente o imóvel ser constrito à dívida saldada, e ser resguardado um valor razoável para aquisição de nova residência.

Em decisão mais recente, o Tribunal Catarinense permitiu a penhora de imóvel alegado pelo executado como bem de família. Vale ressaltar que o argumento de suntuosidade do imóvel não foi o único a fundamentar a decisão, porém, cabe como lição a sapiente colocação do juízo no sentido de enfatizar o alto valor do imóvel que nos faz crer que existe luz no fim do túnel.

Nestes termos, vejamos tal acórdão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA. PEDIDO DE IMPENHORABILIDADE DE IMÓVEL POR SER BEM DE FAMÍLIA. PROVAS INSUFICIENTES NO SENTIDO DE QUE O BEM É UTILIZADO PARA MORADIA. IMÓVEL DE ELEVADO VALOR E GRANDE METRAGEM. EXECUTADO QUE NÃO FOI LOCALIZADO NO IMÓVEL, ALÉM DE DEPOIMENTO DE SEU VIZINHO NO SENTIDO DE QUE TEM DOMICÍLIO EM OUTRA CIDADE. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PROVIDO PARA MANTER A PENHORA.

Assim, conjugando as transferências dos imóveis à sogra, a dificuldade de se encontrar o agravado no endereço de sua suposta residência, bem como a certidão de fé pública com testemunho de vizinho dizendo que o agravado é domiciliado em Florianópolis, não há como manter a impenhorabilidade suscitada. Ademais, tem-se que o imóvel tem 1.140m² (mil, cento e quarenta metros quadrados – fl. 36), e vale quase R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais – fls. 39 a 41).

No cenário nacional a controvérsia ganha um contorno diverso, sendo encontradas algumas decisões no Tribunal de Justiça de São Paulo por exemplo, no sentido de possibilitar a contrição de bens protegidos pela impenhorabilidade absoluta, quando estes fossem de exagerado valor.

Tais julgados surgem como um alento aos defensores de um processo de execução realmente efetivo, demonstrando, assim, que existe uma linha do Poder Judiciário que exerce sua função buscando realmente atender aos anseios da sociedade e de maneira substancialista acompanhando as influências operados pelo costume, bem como julgando a partir de um prisma constitucional.

Neste sentido leia-se:

PENHORA – BEM DE FAMÍLIA – Execução por título extrajudicial – Confissão de dívidas – Penhora de imóvel pertencente ao co-executado – Alegação de que ele se trata de ‘bem de família’ – Acolhimento que deve ser feito com ressalvas diante das peculiaridades do caso – Imóvel extremamente suntuoso, possuindo mais de 700 metros quadrados – Devedor que, antes do ajuizamento da presente ação, transferiu outros dezessete imóveis seus a terceira empresa em evidente dissipação do patrimônio – Direito do credor que também deve ser protegido – Hipótese de acolhimento parcial do recurso a fim de que a penhora seja mantida e o imóvel seja levado à hasta pública, devendo, contudo, metade do produto alcançado em relação à quota parte penhorada, ser revertida em proveito do devedor, a fim de que possa adquirir outro imóvel para albergar a si e a sua família – Decisão reformada – Recurso parcialmente provido”.

Na presente decisão, o julgador utiliza o conteúdo do artigo 650, Parágrafo Único do Código de Processo Civil, mesmo que vetado. O presente julgado também tratou de trazer para a prática processual as sábias lições dos professores Cândido Rangel Dinamarco, Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Cruz Arenhart, dentre outras já expostas na presente pesquisa.

Na mesma linha, nesta outra decisão também do Tribunal de Justiça de São Paulo, o julgador enfatizou que o direito de habitação que é a base da impenhorabilidade do bem de família não resta prejudicado no caso de reservado valor suficiente para a aquisição de nova residência:

EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – PENHORA – IMÓVEL – DECISÃO OUE REJEITOU A IMPUGNAÇÂO OFERTADA PELA RECORRENTE MANTENDO A PENHORA SOBRE O IMÓVEL EFETUADA NOS AUTOS DE EXECUÇÃO – INTERPRETAÇÃO TEOLÓGICA DO ARTIGO 1o, DA LEI 8.009/09, REVELA QUE O OBJETIVO DA NORMA NÃO É PROTEGER O DEVEDOR, MAS SIM O BEM-ESTAR DA FAMÍLIA – IMÓVEL DE ALTO PADRÃO, CARACTERIZADO – IMPENHORABILIDADE QUE NÃO É ABSOLUTA – NECESSIDADE, NO ENTANTO, DE AVALIAÇÃO ESPECÍFICA DA RESIDÊNCIA, CUJO VALOR DEVE SER RESERVADO NA ALIENAÇÃO, PARA GARANTIA DO DIREITO DE HABITAÇÃO – DECISÃO MANTIDA.

Deve ser ressaltada a sapiência das decisões expostas acima no que tange a real perseguição da justiça, realizando os Desembargadores a real aplicação da justiça que lhes é dever.

Não se sugere, no presente trabalho que o magistrado extrapole seus poderes sobrepondo-se à norma positivada, mas que julgue no sentido de preencher as omissões constantes na lei por conta da ineficiência do parlamento, que sabe-se legisla sem compromisso com o efetivo desenvolvimento do direito, mas muitas vezes apenas com base em interesses próprios.

Seguindo a linha do tribunal paulista, porém sem tanta clareza quanto aos argumentos manejados, colhe-se o presente julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que também coaduna com a tese aqui apresentada:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. DIREITO CIVIL. OBRIGAÇÕES. ESPÉCIES DE TÍTULOS DE CRÉDITO.

Bem imóvel de alto padrão. Ausência de elementos probatórios efetivos de que se trate de bem de família. Impenhorabilidade afastada.

AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. UNÂNIME.

Verifica-se também, que com a alienação do imóvel os agravados podem saldar o seu débito e adquirir residência digna em qualquer zona nobre desta capital, ainda que não corresponda ao alto-padrão que ostenta o apartamento penhorado. Neste sentido, de dizer que não foi a intenção do legislador, ao instituir a impenhorabilidade do bem de família, proteger vultuosa propriedade urbana em detrimento dos direitos dos credores, mas sim o direito à moradia, o qual, in casu, não sofrerá cerceamento.

Apesar de não ser causa exclusiva de provimento do recurso, a questão do alto valor do imóvel foi abordada de maneira concreta no acórdão, no sentido de afirmar que não foi a intenção do legislador proteger as grandes propriedades, prejudicando, assim, o direito do credor.

As decisões que acolhem a teoria da relativização da impenhorabilidade do bem de família luxuoso, apesar de raras, são didáticas ao demonstrar que o absolutismo em se proteger bens de valor elevado do devedor afronta diretamente os princípios constitucionais.

Entretanto, apesar de festejada, a coerência apresentada em certos julgados dos Tribunais de São Paulo e do Rio Grande do Sul não é compartilhada pelo Superior Tribunal de Justiça que adota posicionamento formalista, decidindo em todos os casos em favor de manter a impenhorabilidade independente do valor do imóvel.

Neste rumo, verifica-se o presente julgado:

RECURSO ESPECIAL – DIREITO CIVIL – QUESTÃO PRELIMINAR – JULGAMENTO PROFERIDO POR CÂMARA COMPOSTA MAJORITARIAMENTE POR JUÍZES CONVOCADOS – POSSIBILIDADE, DESDE QUE OBSERVADOS PARÂMETROS LEGAIS – PRECEDENTES – EXISTÊNCIA DE VÍCIO REDIBITÓRIO E O PROSSEGUIMENTO DAEXECUÇÃO DA FORMA MENOS ONEROSA AO DEVEDOR PREQUESTIONAMENTO – AUSÊNCIA – INCIDÊNCIA DA SÚMULA 211/STJ – PENHORA – PARTE IDEAL DE IMÓVEL – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES – BEM DE FAMÍLIA – AVALIAÇÃO – JUÍZO DINÂMICO – BEM IMÓVEL DE ELEVADO VALOR – IRRELEVÂNCIA, PARA EFEITOS DE IMPENHORABILIDADE – ÍNDICE DE CORREÇÃO MONETÁRIA – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL – DEMONSTRAÇÃO – INEXISTÊNCIA – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – MULTA – IMPOSSIBILIDADE – INTUITO PROCRASTINATÓRIO -AUSÊNCIA – INCIDÊNCIA DA SÚMULA 98/STJ – RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PARCIALMENTE PROVIDO.

Do interior do presente Acórdão, colhe-se a seguinte argumentação, que com todo o respeito aqui se discorda:

VI – O art. 3º da lei nº 8.009/90, que trata das exceções à regra da impenhorabilidade, não faz traz nenhuma indicação concernente ao valor do imóvel. Portanto, é irrelevante, para efeitos de impenhorabilidade, que o imóvel seja considerado luxuoso ou de alto padrão. Precedente da eg. Quarta Turma.

No mesmo sentido:

PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA. ATO. GOVERNO LOCAL. AUSÊNCIA. DEMONSTRAÇÃO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. IMPENHORABILIDADE. BEM DE FAMÍLIA. PRECEDENTES.

1. Configura-se deficiente a fundamentação do apelo nobre, atraindo a incidência da Súmula 284⁄STF, se o recorrente não indica qual o ato de governo local contestado em face de lei federal teria sido julgado válido pelo Tribunal de origem, de modo a viabilizar o inconformismo pela alínea “b” do permissivo constitucional.

2. Para a análise da admissibilidade do recurso especial pela alínea “c” do permissivo constitucional, torna-se imprescindível a indicação das circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados, mediante o cotejo dos fundamentos da decisão recorrida com o acórdão paradigma, a fim de demonstrar a divergência jurisprudencial existente (arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ). Nesse sentido, confira-se o AgRg no Ag 1053014⁄RN, Rel. Min. JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, DJe 15.09.2008. Malgrado a tese de dissídio jurisprudencial, o recorrente não realizou o necessário cotejo analítico, que não se satisfaz pela mera transcrição de ementas ou votos, não restando demonstradas, assim, as circunstâncias identificadoras da divergência entre o caso confrontado e o aresto paradigma. Outrossim, não resta aperfeiçoado o apontado dissídio jurisprudencial, se os paradigmas colacionados são oriundos do mesmo Tribunal prolator do acórdão recorrido. Incidência da Súmula 13⁄STJ.

3. O bem de família, tal como estabelecido em nosso sistema pela Lei 8.009⁄90, surgiu em razão da necessidade de aumento da proteção legal aos devedores, em momento de grande atribulação econômica decorrente do malogro de sucessivos planos governamentais. A norma é de ordem pública, de cunho eminentemente social, e tem por escopo resguardar o direito à residência ao devedor e a sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia, indispensáveis à manutenção e à sobrevivência da célula familiar.

4. Ainda que valioso o imóvel, esse fato não retira sua condição de serviente a habitação da família, pois o sistema legal repele a inserção de limites à impenhorabilidade de imóvel residencial.

5. Recurso conhecido em parte e, na extensão, provido.

Nesta senda, podemos concluir que apesar de parte da doutrina, bem como alguns magistrados defenderem a possibilidade de se relativizar a impenhorabilidade do bem de família de vultoso valor, o que vemos nos tribunais superiores é uma aplicação restrita da norma que afasta de plano a carga valorativa dos princípios constitucionais, deixa de realizar de maneira efetiva o processo executório.

 

5 PENHORAR O BEM DE FAMÍLIA DE VULTOSO VALOR, PORQUE NÃO?

 

Por mais que tenha sido de grande valia a intenção do legislador ao proteger a moradia por meio da redação atribuída ao artigo 1.º da Lei 8.009, faz-se inegável que houve omissão no que tange ao valor do bem imóvel que se sujeita à proteção legal.

O referido dispositivo não fez distinção alguma entre imóveis de elevado ou baixo valor, entre a mansão e o casebre, entre o palacete e o barraco. O tratamento padronizado utilizado em situações tão diferentes em nosso ver não permite uma concreta resolução do caso concreto, tornando-se fonte de incontáveis injustiças.

Neste sentido, o efeito prático da possibilidade de penhora do bem de família de vultoso valor vai muito além da resolução de um caso concreto com a satisfação de um crédito. Mas demonstra-se como um avanço considerável na busca pela efetividade da jurisdição, justamente naquele que é um dos maiores gargalos do processo civil, o processo de execução.

É esta a ideia de Dinamarco (2004), que entende como solução prática para combater o tratamento desigual na fase executória, que se permita a penhora do bem de família luxuoso, leve-o à arrematação e reserve parte do dinheiro obtido para que o devedor adquira outra razoável residência.

Tal posicionamento é a genuína tentativa de colocar em prática o princípio constitucional da proporcionalidade, buscando aplicar, de maneira isonômica o que vem positivado em nossa legislação.

Argumento recorrente entre aqueles que defendem a ideia da relativização da impenhorabilidade do bem de família de vultoso valor, é a aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade na análise de casos em que se busque a expropriação de bens de luxuosos.

Cristóvam (2006. p. 211) conceitua o princípio da proporcionalidade da seguinte maneira:

A proporcionalidade é uma máxima, um parâmetro valorativo que permite aferir a idoneidade de uma dada medida legislativa, administrativa ou judicial. Pelos critérios da proporcionalidade pode-se avaliar a adequação e a necessidade de certa medida, bem como, se outras menos gravosas aos interesses sociais não poderiam ser praticadas em substituição àquela empreendida pelo Poder Público.

Deste modo, colhemos o ensinamento de que aplicar a proporcionalidade nada mais é do que analisar se o ato legislativo administrativo ou judicial condiz com os preceitos basilares do estado democrático de direito. Em outras palavras, o julgador não deverá julgar como uma máquina, aplicando apenas aquilo que vem sendo positivado, pelo fato de que cabe ao judiciário, quando da omissão ou equívoco da norma, fazer cessar efeitos inconstitucionais, de modo que não afronte uma garantia fundamental.

Ainda acerca do dever do magistrado em controlar a constitucionalidade dos atos legislativos, vejamos a lição de Barroso (1996, p. 327):

Por ser uma competência excepcional, que se exerce em domínio delicado, deve o Judiciário agir com prudência e parcimônia. É preciso ter em linha de conta que, em um Estado democrático, a definição das políticas públicas deve recair sobre os órgãos que têm o batismo da representação popular, o que não é o caso de juízes e tribunais. Mas, quando se trate de preservar a vontade do povo, isto é, do constituinte originário, contra os excessos de maiorias legislativas eventuais, não deve o juiz hesitar. O controle de constitucionalidade se exerce, precisamente, para assegurar a preservação dos valores permanentes sobre os ímpetos circunstanciais. Remarque-se, porque relevante, que a última palavra poderá ser sempre do Legislativo. É que, não concordando com a inteligência dada pelo Judiciário a um dispositivo constitucional, poderá ele, no exercício do poder constituinte derivado, emendar a norma constitucional e dar-lhe o sentido que desejar.

É neste sentido o posicionamento de outros autores que entendem que deva ser proporcional a atuação do juiz, de maneira a buscar sempre a execução efetiva, porém, sem abusar todavia da esfera pessoal do executado.

Silva (1993, p. 30) leciona que aplicar a norma acerca da impenhorabilidade como está positivada, sem fazê-lo de acordo com a proporcionalidade, é o mesmo que “colocar na ‘vala-comum’ milionários e falidos, ricos e pobres. Um proprietário de modesto imóvel terá a mesma proteção que aquele que tenha mansão cujo valor é equivalente ao de vários imóveis pequenos ou médios”.

Desta maneira, seria plenamente viável valer-se da proporcionalidade como maneira de solucionar os conflitos entre as garantias à moradia do devedor e o direito ao crédito do executado.

Tal aplicação da proporcionalidade deveria se dar perante uma análise de cada caso em concreto, fazendo, assim, ser materializada a real busca pela justiça estabelecida em nossa constituição.

Propõe-se, no presente artigo, com base em algumas acertadas decisões judiciais, bem como seguindo a lição de renomados juristas, que as decisões acerca da penhorabilidade dos bens de família de vultoso valor sejam analisadas à luz do princípio da proporcionalidade.

Tal abordagem tem como objetivo, além de buscar a real efetivação do processo executório, limitar a proteção exagerada que se estabeleceu acerca dos bens do devedor. Proteção esta que surgiu para amparar o devedor que beira as raias da miserabilidade e que, ao ver-se em situação de desespero, tem apenas seu teto como patrimônio, mas que acaba por proteger o caloteiro que resida em luxuosa residência.

Acerca do conflito entre a proteção do devedor e o dever do estado em fazer valer a tutela jurisdicional, faz a seguinte reflexão o professor Neves (s. d., p. 25)

Sendo o bem de família instituto que visa a garantia mínima de preservação da dignidade humana do executado, mantendo-o com no mínimo uma moradia para seguir adiante com sua vida, a mesma preocupação deve ser também estendida ao exequente, que também tem dignidade humana, aliás, na mesma medida daquela que se procurou preservar para o devedor. É claro que um exequente rico, cuja não satisfação do crédito representará tão-somente um desfalque patrimonial, não estará sofrendo qualquer restrição à sua dignidade humana. Mas e o exequente que se não receber o valor da dívida contraída passará por evidentes privações e sacrifícios, por vezes até mesmo sendo levado a mais absoluta miserabilidade?

Tal lição remete à conclusão de que a relativização da impenhorabilidade do bem de família de vultoso valor se apresenta como uma maneira de equilibrar este conflito entre a proteção à moradia, guarnecida pela constituição federal e posteriormente transformada no bem de família, e o dever do estado de forçar o devedor a cumprir aquilo estabelecido em um título executivo.

Neste sentido, caminha-se para as considerações finais com a intenção de expor a necessidade do estado em fazer valer a tutela jurisdicional, no sentido de concretizar aquilo previsto na Constituição Federal.

 

2 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Com base em todo o exposto acima se chega à conclusão de que o processo de execução nada mais é do que o instrumento estatal para se exigir que o devedor coloque em prática aquilo que está estabelecido em uma obrigação oriunda de um título executivo.

Tal obrigação, quando não cumprida voluntariamente, merece guarida do poder judiciário para que seja o devedor compelido a adimpli-la.

Deve-se considerar que, quando o estado retirou do próprio exequente o poder de cobrar sua dívida com as próprias mãos, e trouxe para a si o ônus de garantir que os pactos e as sentenças fossem cumpridas, ele passa a ter a obrigadão assegurar que tal garantia seja efetiva, e não apenas ilusória.

Acerca do direito de ingressar com a ação e ver seu direito assistido, vejamos a lição de Marinoni (2008, pp. 172-173).

Como consequência disso, há que entender que o cidadão não tem simples direito à técnica processual evidenciada na lei, mas direito a um determinado comportamento judicial que seja capaz de conformar a regra processual com as necessidades do direito material e dos casos concretos.

Neste diapasão, em confronto a este direito do exequente passam a existir institutos de proteção ao devedor, tais como a impenhorabilidade do bem de família.

Neste prisma, entende-se que tal instituto possui grande relevância em nosso ordenamento jurídico, em especial por instrumentalizar o direito constitucional à moradia, protegendo o devedor que se encontre em situação de miséria e tenha apenas uma morada para abrigar sua família.

No entanto, a crítica nuclear do presente artigo é justamente a ausência no ordenamento jurídico atual de equilíbrio entre tais direitos, do credor, e do devedor, fazendo com que o processo de execução de modo geral se demonstre como um procedimento confortável ao calote.

Assim tentou se demonstrar mediante a análise de julgados e de posicionamentos doutrinários que a impenhorabilidade do bem de família quando passa a ser uma forma de burlar a execução por parte do devedor que possua imóvel de valor luxuoso possa ser relativizada pelo magistrado.

Lembrando sempre que tal relativização deve resguardar sempre valor suficiente para aquisição de outro imóvel digno, nos exatos termos do que se propunha o parágrafo único do artigo 650 do Código de Processo Civil de 1973, dispositivo este que restou vetado.

Desta forma, conclui-se a explanação defendendo-se a ideia de que o juiz não deve se ater a letra fria da norma quando houver manifesta omissão, aplicando assim a lei sob o prisma da proporcionalidade e com base em uma análise principiológica.

Espera-se nesse sentido que as obras e decisões aqui expostas possam servir de norte aos que buscam informações acerca de tal controvérsia, bem como sirva de fonte para pesquisa aos que buscam argumentos com o escopo de pleitear tal relativização.

 

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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